Música de Noel Rosa Psicografada
OBRAS PSICOGRAFADAS - O DIREITO DO AUTOR
"Eis o dilema: quem é titular dos direitos autorais da obra psicografada? O espírito? O médium? Os herdeiros do de cujus que ditou a obra? Seja como for, complexa é a relação destas obras com o Direito."
De acordo com os doutrinadores do espiritismo, o espírito é uma coisa distinta do corpo, vive muitas vidas através de muitos corpos, e comunica-se com os vivos através dos médiuns.
Esta comunicação com o Além, muitas vezes, torna-se pública, na forma de livro. Trata-se da edição das obras psicografadas, verdadeiro fenômeno de vendas, existindo no Brasil um espantoso número de obras desta espécie.
O fenômeno da psicografia chamou a atenção da mídia em diversas oportunidades. Em 1986, um jornal da cidade de São Paulo cobriu o III Festival de Música Mediúnica e Encontro de Arte Espírita, publicando reportagem que relatava o evento.
Durante todo o referido Festival, que durou dois dias, espíritos baixaram em um ginásio e envolveram o local numa nuvem de mediunidade. Vários médiuns receberam espíritos e psicografaram obras, tais como quadros assinados por pintores famosos. Muitas destas obras foram vendidas.
O médium Jorge Rizzini, um dos organizadores do Festival, aos 61 anos, já recebeu diversos poetas, entre eles o saudoso Manuel Bandeira.
Também recebe compositores famosos, como Francisco Alves e Noel Rosa, além dos clássicos Giacomo Puccini e Vincenzo Bellini. As melodias transmitidas ao médium são gravadas por músicos profissionais.
Apesar da suposta origem das músicas, nunca uma música mediúnica chegou a fazer sucesso, valendo lembrar as palavras do cético e mordaz Agripino Grieco: "Se é verdade que isto acontece, a morte faz muito mal ao estilo das pessoas" (citado por Antônio Chaves, Criador da Obra Intelectual, Editora LTr., pág. 286).
Seja como for, complexa é a relação destas obras com o Direito.
II – A psicografia e o Direito – Antônio Chaves relata que a psicografia já influiu decisivamente na decisão de um julgamento (ob. cit., pág. 286).
A defesa de um acusado de assassinato apresentou, no dia do julgamento, que durou 15 horas, cinco cartas psicografadas em que a vítima afirmava que a arma teria disparado acidentalmente.
O acusado acabou absolvido e, segundo foi publicado pela imprensa, "pela primeira vez em toda a história jurídica do mundo, um juiz de Direito apóia sua decisão em uma mensagem vinda do Além". (Diário da Noite de 10.09.79, pág. 13).
Mas a questão jurídica, de suma importância, que envolve as obras psicografadas, diz respeito aos direitos autorais.
Eis o dilema: quem é titular dos direitos autorais da obra psicografada? O espírito? O médium? Os herdeiros do de cujus que ditou a obra?
Nosso legislador já tentou enfrentar a questão. O escritor Jorge Amado, então Deputado federal, sustentou que os direitos autorais caberiam exclusivamente ao médium que psicografa a obra.
Contudo, a verdade é que há um conflito entre o desejo de se regulamentar a matéria e as garantias constitucionais, que impedem o legislador de reconhecer a existência de um fenômeno paranormal. Segundo Clóvis Ramalhete, citado por Antônio Chaves: "A lei não pode versar a psicografia, como não faria sobre a virgindade de Maria" (ob. cit., pág. 288).
Logo, não há lei que solucione o dilema das obras psicografadas, o que vem causando problemas concretos, reais.
III – O caso do espírito de Humberto de Campos – Marcelo Souto Maior, Jornalista que publicou a biografia de Francisco Cândido Xavier (As Vidas de Chico Xavier, Ed. Rocco, 1996), relata que no início do ano de 1944, o médium abriu um envelope enviado pela Oitava Vara Cível do Rio de Janeiro e assustou-se. A viúva e os três filhos do escritor Humberto de Campos moviam um processo contra ele e a Federação Espírita Brasileira.
O fato era que a editora da Federação Espírita Brasileira havia publicado cinco obras, duas delas já em terceira edição, atribuídas ao espírito do falecido escritor, psicografadas pelo médium Francisco Cândido Xavier.
Estas publicações deixaram a viúva de Humberto de Campos, Catarina Vergolino, numa situação incômoda, pois mantinha contrato com outra editora, que publicava a obra de seu marido, produzida por ele em vida. Diante de seu silêncio, os editores poderiam supor que ela lucrava com os títulos póstumos. Na verdade, Catarina não tinha recebido um tostão, sequer havia sido consultada.
Assim sendo, a viúva do referido homem de letras constituiu advogado e promoveu ação declaratória, em face da Federação Espírita Brasileira e de Chico Xavier, colocando a Justiça no seguinte dilema: declarar que as obras não eram do espírito de Humberto de Campos, fazendo cessar a publicação; ou declarar que as obras eram do espírito de Humberto de Campos, reconhecendo os direitos autorais de seus herdeiros, dando-lhes participação nos lucros.
Catarina requereu todos os meios de provas científicas possíveis, exigindo demonstrações mediúnicas para verificação da sobrevivência e operosidade do espírito de Humberto de Campos.
Propunha exames gráficos dos textos escritos por Chico Xavier, além de provas testemunhais. Queria ter a certeza de que as cinco obras atribuídas ao espírito do escritor, foram mesmo ditadas pelo morto.
Aceitando a defesa da Federação Espírita Brasileira, o Advogado Miguel Timponi, católico praticante, apresentou sua contestação.
Timponi sustentou que afirmar ou negar que as obras fossem de Humberto de Campos seria decretar a oficialização de um princípio religioso, filosófico ou científico, o que o magistrado jamais poderia fazer, dada sua inerente neutralidade diante de tais princípios.
Argumentou ainda que, depois de morto, o indivíduo não pode adquirir direitos e que os herdeiros de Humberto de Campos não poderiam ser reconhecidos como sucessores de direitos patrimoniais sobre uma obra que inexistiu durante a vida do autor.
Finalmente Timponi alegou que Humberto de Campos, ser humano que deixou de existir, não tem qualquer relação com o espírito, que sobrevive de acordo com os cânones do espiritismo. Assim, a designação "Espírito de Humberto de Campos", presente nas obras mediúnicas, não compromete o nome do escritor.
Como testemunha em favor dos réus, Timponi convocou o próprio espírito de Humberto de Campos, que se manifestaria através do médium Chico Xavier.
De fato, durante todo o processo, o espírito se manifestou, demonstrando seu descontentamento com a situação. Em uma de suas mensagens psicografadas, o espírito lembrou que no prefácio de seu primeiro livro, ditado sete anos antes, havia mencionado o fato de finalmente estar livre dos contratos com sua editora, enaltecendo as vantagens do autor fantasma.
Coube ao Juiz João Frederico Mourão Russel dirimir a controvérsia.
Em sentença de 23 de outubro de 1944, o Juiz Russel salientou que a existência da pessoa natural termina com a morte, e que, conseqüentemente, com a morte se extingue a capacidade jurídica de adquirir direitos – mors omnia solvit.
Merece destaque o seguinte trecho da referida sentença:
Ora, nos termos do art. 10 do Código Civil "a existência da pessoa natural termina com a morte"; por conseguinte, com a morte se extinguem todos os direitos e, bem assim, a capacidade jurídica de os adquirir. No nosso direito é absoluto o alcance da máxima mors omnia solvit. Assim, o grande escritor Humberto de Campos, depois de sua morte, não poderia ter adquirido direito de espécie alguma e, conseqüentemente, nenhum direito autoral poderá da pessoa dele ser transmitido para seus herdeiros e sucessores.
Nossa legislação protege a propriedade intelectual em favor dos herdeiros até certo limite de tempo após a morte, mas, o que considera, para esse fim, como propriedade intelectual, são as obras produzidas pelo de cujus em vida. O direito a estas é que se transmite aos herdeiros. Não pode, portanto, a suplicante pretender direitos autorais sobre supostas produções literárias atribuídas ao espírito do autor.
Como se tratava de ação declaratória, o Juiz Russel assim concluiu sua sentença:
Do exposto se conclui que, no caso vertente, não há nenhum interesse legítimo que dê lugar à ação proposta. Além disso, a ora intentada (ação declaratória) não tem por fim a simples declaração de existência ou inexistência de uma relação jurídica, nos termos o § único do art. 2º do Código de Processo, e sim a declaração da existência ou não de um fato (se são ou não do espírito de Humberto de Campos as obras referidas na inicial), do qual hipoteticamente, caso ocorra ou não, possam resultar relações jurídicas que a suplicante enuncia de modo alternativo. Assim formulada, a inicial constitui mera consulta; não contém nenhum pedido positivo, certo e determinado, sobre o qual a Justiça se deva manifestar.
Como observa, com razão, a contestação, a presente ação declaratória, tal como está formulada a conclusão inicial, jamais poderia ser julgada improcedente, se fosse admissível.
Isto posto, julgo a suplicante carecedora da ação proposta e a condeno nas custas.
Esta sentença foi confirmada, em 3 de novembro de 1944, por acórdão da Quarta Câmara do Tribunal de Apelação do Distrito Federal.
IV – A psicografia e o direito patrimonial do autor – A idealização da personalidade é indispensável ao mundo jurídico, uma vez que o direito se concebe como uma organização da vida, onde, sob a égide tutelar da lei, se expande a faculdade dos indivíduos. Esta faculdade, assegurada pela ordem jurídica, é a irradiação de um foco – a personalidade.
No nosso Direito, a personalidade jurídica tem começo no nascimento com vida. Conseqüentemente, com a morte termina a personalidade jurídica, deixando de existir capacidade para aquisição de direitos.
Neste sentido, Caio Mário da Silva Pereira assim doutrina: "A personalidade, como atributo da pessoa humana, está a ela indissoluvelmente ligada. Sua duração é a da vida" (Instituições de Direito Civil, vol. I, Forense, 1978, pág. 203).
A inevitável conclusão é que o morto deixa de ser pessoa. Resta, entretanto, sua herança. Esta herança, que se caracteriza pelo conjunto de bens e direitos, patrimônio que o de cujus possuiu, se transmite aos herdeiros justamente porque o falecido deixou de ser capaz de ter direitos e obrigações na ordem civil.
Logo, o direito hereditário é o complexo dos princípios segundo os quais se realiza a transmissão do patrimônio de alguém que já não mais existe. O patrimônio transmitido é, justamente, a herança.
No caso dos direitos patrimoniais do autor, estes nascem com a criação da obra, e são transmitidos por sucessão causa mortis, sobrevindo, então, herdeiros e legatários à titularidade destes direitos.
Uma vez que estes direitos patrimoniais estão relacionados, intrinsecamente, com o meio de comunicação que exteriorizou a criação, o patrimônio corresponde a uma obra, inexistindo direitos sobre o que não se fez luz.
Aceitando-se ou não a tese da sobrevivência do espírito, não há dúvida de que espírito não é capaz de direitos e obrigações. Assim, a obra de pensamento do espírito, psicografada, posteriormente à desagregação do corpo físico, não faz parte do patrimônio do de cujus, que deixou de ter personalidade jurídica.
Não há que se questionar, portanto, direitos patrimoniais de autor sobre obras que não integravam – porque não existiam – o patrimônio deixado aos herdeiros.
V – A psicografia e o direito moral do autor – O jurista grego Georges Michaélidès-Nouaros, Doutor em Direito pela Universidade de Atenas, escreveu que le droit moral à as base la protection de la personnalité de l’auteur. (Le Droit Moral de l’Auteur, Librairie Arthur Rousseau, 1935, pág. 65).
Segundo Carlos Alberto Bittar:
Os direitos morais são vínculos perenes que unem o criador à sua obra, para a realização da defesa de sua personalidade. Como os aspectos abrangidos se relacionam à própria natureza humana e desde que a obra é emanação da personalidade do autor – que nela cunha, pois, seus próprios dotes intelectuais –, esses direitos constituem a sagração, no ordenamento jurídico, da proteção dos mais íntimos componentes da estrutura psíquica do seu criador. (Direito de Autor, Forense Universitária, 1994, pág. 44).
Gérard Gavin, Doutor em Direito pela Universidade de Grenoble, que dedicou um capítulo de seu livro, Le Droit Moral de l’Auteur, prefaciado pelo célebre Henri Desbois, ao estudo das prerrogativas do direito moral post mortem, escreveu que:
Du vivant d’un auteur, le droit moral a pour fonction la protection de sa personnalité à travers son oeuvre. Après sa mort, le droit moral a encore pour objectif la sauvegarde de sa mémoire par la survie de son oeuvre maintenue dans l’état où il l’a laissé. Il est donc logique que disparaissent avec l’auteur les prérogatives impliquant un changement de volonté qu’il ne peut plus manifester. Ce son ce qu’il est convenu d’appeler très approximativement les prérogatives positives du droit moral, comme le droit de retrait, le droit de repentir, et même le droit de divulgation.
Le droit moral "post mortem" serait donc réduit aux droits au respect de l’oeuvre, et à la paternité de l’auteur protecteur de sa "personnalité posthume". (Ob. cit., Dalloz, 1960, pág. 118).
As obras psicografadas são expostas nas livrarias com a declaração inequívoca da sua natureza, isto é, como sendo produção mediúnica.
Os livros psicografados são sempre publicados por editoras espíritas, fato que especializa a obra.
O nome da pessoa que psicografou é sempre o mais destacado, aparecendo no alto da capa, lugar normalmente reservado ao nome do autor. Já o nome da pessoa falecida, que teria ditado a obra, aparece acompanhado da expressão "ditado pelo espírito de" ou "do espírito de".
Logo, não há risco de dúvida ou engano. É evidente que o consumidor, ao se deparar com um livro psicografado, ditado pelo espírito de algum célebre escritor ou artista, verificará que não se trata de uma das obras criadas pela referida pessoa em vida.
Isto se aplica aos que acreditam no fenômeno, pois, para estes, o espírito difere da pessoa, preexistindo antes de seu nascimento, subsistindo após sua morte. Também os céticos, por desacreditarem, não farão qualquer relação entre o espírito e a pessoa que, definitivamente, não mais existe.
A obra psicografada não fere, portanto, a personalidade daquele que deixou de existir. Esta permanecerá intocada, relacionada às obras produzidas em vida, permanecendo devidamente resguardados os direitos morais do autor.
VI – Conclusão
La personalité se perd avec la vie. Les morts ne sont plus de personnes, ils ne sont rien. (Marcel Planiol).
A capacidade de ser sujeito de direitos e obrigações pressupõe a existência de um ser humano.
O espiritismo dogmatiza que o espírito é distinto do corpo, deixando claro que, depois do falecimento do ser humano, nenhum laço ligará mais o espírito aos restos mortais. Também não há ligação entre o espírito e os parentes do falecido que são, na verdade, parentes apenas do ser humano que deixou de existir.
Espírito não tem parente. Considerar o contrário seria admitir ligações entre o espírito e todas as pessoas relacionadas, por laços sangüíneos ou legais, aos muitos corpos encarnados durante inúmeras vidas. Mesmo assim, ninguém teria direitos sobre as produções literárias ou artísticas dos espíritos. Não existe lei que regule esta sucessão, que é definitivamente inexistente, pela simples razão de serem os espíritos imortais.
O direito de autor protege a propriedade intelectual em favor dos herdeiros, atribuindo-lhes direitos patrimoniais sobre as obras produzidas, tratando-se, contudo, de obras produzidas pelo de cujus ainda em vida.
Não há que se pretenderem direitos autorais sobre produções literárias atribuídas ao espírito de um escritor falecido.
O espírito que ocupou o corpo de um escritor renomado, ou de um célebre artista, não tem a personalidade daquele ser humano que deixou de existir. O fato de se identificar o espírito através do nome do ser humano falecido, não implica na ressurreição do de cujus. Os trabalhos psicografados, ditados por um espírito imortal, não se confundem com as obras da vida de certa pessoa.
Assim, o fenômeno da psicografia também não fere os direitos morais do autor. As obras mediúnicas psicografadas não prejudicam a reputação dos trabalhos elaborados pelo escritor em vida, mesmo porque a conclusão é que o autor da obra psicografada não é outro senão o médium que a escreve.
MAURÍCIO LOPES DE OLIVEIRA é Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Membro do Centro de Estudos de Direitos das Criações Imateriais da Universidade de Montpellier, França, onde é Mestrando em Direito e diplomado pelo Centro de Estudos Internacionais da Propriedade Industrial da Universidade de Strasbourg, França, e Membro do escritório Gusmão & Labrunie S/C Ltda., São Paulo.
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