Perfeição
Josiel retornava do centro umbandista que freqüentava há cinco anos para sua casa visivelmente transtornado.
Em sua forma de pensar continuar a freqüentar o terreiro tornara-se impossível, pois, segundo ele, em um local onde reina a fofoca e a maledicência Jesus e a caridade não poderiam se manifestar.
Não pensem que Josiel era um espírito desprovido de autocrítica. Não, era o oposto!!! Josiel criticava a si próprio de uma maneira até demasiada; tinha consciência que era um espírito em expiação para tentar sanar erros praticados em encarnações pretéritas.
Não possuía, assim como acontece com a grande maioria dos encarnados, a mínima noção dos erros que praticara em encarnações pretéritas, mas tinha a plena convicção que a prática da caridade seria a única forma de tentar corrigi-los.
Ah, meus amigos como era difícil para Josiel à prática da caridade!!! Mas não se espantem por que a dificuldade desta prática redentora não era devido ao orgulho e egoísmo exacerbados; muito pelo contrário, ele era um espírito até generoso.
Não meus irmãos, a dificuldade do exercício da caridade para Josiel se dava pela impossibilidade dele, assim como ocorre com qualquer pessoa, pratica-la sozinho. Não, por favor, não estranhem o comportamento de Josiel, pois poucos espíritos são mais tímidos e sensíveis à energia do próximo do que ele.
Fora o divino mestre Jesus quem ensinara que onde estivessem duas ou mais pessoas reunidas em nome Dele ele estaria presente; também fora Jesus quem escolhera doze apóstolos para auxiliá-lo a pregar a Boa Nova; ou seja, o mestre divino sempre ensinara que a caridade deveria ser praticada em beneficio ao próximo, pois seria somente dando que se teria a possibilidade de recebê-la de volta e evoluir junto a Deus.
Imaginem companheiros alguém ter a clareza da necessidade de se buscar a fraternidade em prol da caridade, mas sentir uma extrema dificuldade para tanto, seja por sua enorme timidez ou pela imensa facilidade de, apenas pela proximidade, sentir o que vai ao coração e na mente do ser humano.
Aliás, desde cedo, mesmo quando professara outras religiões, todas estas foram unânimes em afirmar que aquela extrema sensibilidade seria ou um problema neurológico ou um ataque do demônio; seus pais, assim, submeteram-no tanto às práticas médicas quanto à algumas práticas religiosas sem conseguirem resultado algum.
Foi somente quando se tornou umbandista que Josiel passou a enxergar sua extrema sensibilidade não como uma maldição, mas como um dom. Josiel descobrira-se não doente ou endemoniado, mas tão somente médium; descobrira também que somente utilizando o exercício da mediunidade em favor da caridade é que ele encontraria alguma luz que clareasse os seus caminhos na estrada que leva a evolução junto a Deus.
Josiel pensava que havia encontrado a religião perfeita praticada em um terreiro perfeito e por pessoas perfeitas.
Cinco anos se passaram desde a entrada dele no terreiro e é quando podemos vê-lo retornar para o conforto de sua residência totalmente convicto de que, no dia seguinte, pediria desligamento daquele centro umbandista e partiria em busca de outro.
Tomou um banho relaxante, deitou em sua cama confortável e não foram necessários muitos minutos para que seu duplo se desprendesse parcialmente do corpo físico.
Josiel não sabia, mas estava sendo guiado para junto de uma pedreira em mata aberta para receber instruções do seu exu de trabalho no ritual de umbanda.
Chegando ao local indicado, Josiel viu um ser de mais de dois metros de altura e roupas pretas que irradiavam um estranho magnetismo sentado em uma espécie de cadeira de cor prateada localizada em cima da pedreira.
Só de olhar para aqueles dois olhos grandes negros e penetrantes Josiel entendeu que deveria subir aquela pedreira e ficar diante daquele ser; então, sem pensar duas vezes, Josiel caminhou em direção a ele e ajoelhou-se respeitosamente diante daquele ser.
— Levante-se!
Josiel obedeceu prontamente.
— Sabe quem sou eu?
— Não senhor.
— Sabe o que faz aqui?
— Não senhor.
O guardião então soltou uma sonora e gutural gargalhada para depois dizer:
— Aquele que não sabe quem é e nem para onde vai me parece que está perdido.
— O senhor me desculpe, mas eu sei quem sou.
— Sabe?
— Sim senhor!
— Quem é você?
— Sou Josiel.
— Não. Esta resposta prova que você sabe qual é o seu nome, eu quero saber quem é você.
Vendo o silêncio pertubador de Josiel o guardião tornou a gargalhar:
— Ahahahahahahah!!! Complexa esta questão de identidade não é companheiro?
— Sim senhor, mas...
— Prossiga!!!
— ... pelo menos eu sei para onde vou!
— Tem certeza?
— Absoluta.
— Para onde você vai?
— Para um outro terreiro. Um terreiro que também pratique a caridade, mas onde não se julgue tanto o próximo.
— Você procura um terreiro perfeito?
Diante do silêncio de Josiel o guardião continuou:
— Companheiro, sou um exu e devo lhe perguntar: que terreiro você procura?
— Um terreiro com pessoas perfectíveis.
— Responda-me: Jesus quando encarnado viveu dentro de templos religiosos ou junto das imperfeições de prostitutas, ladrões e malfeitores?
— Mas Jesus convivia com estes malfeitores para levar a perfeição do amor de Deus até elas.
— Concordo, mas ele realizava esta tarefa sozinho?
— Não, ele era auxiliado principalmente por seus apóstolos.
— Os apóstolos eram perfeitos?
— Não, mas Jesus sabia que podia contar com cada um deles porque tinha certeza que nenhum falharia em sua tarefa.
— Você se engana companheiro: Pedro era impulsivo, Tiago esperava sempre mais ver para depois crer e eu poderia continuar tecendo comentários sobre as dificuldades humanas dos demais apóstolos só para que você entenda que Jesus não tinha a certeza de que cada um dos apóstolos não falharia em suas missões; Jesus tinha a esperança que o amor dos apóstolos à obra de Deus seria maior que suas imperfeições e que esse amor os auxiliariam a não falhar no desempenho de suas missões.
— Entendo.
— Jesus tinha esperança e não certeza.
— Entendo.
— A mesma esperança que tem em você e em cada um de seus irmãos que compõem a humanidade.
— Entendo.
— Esperança de que cada um de vocês não falhe na missão de praticar a caridade.
— Entendo o que o senhor quer dizer, realmente não devemos medir esforços para praticar a caridade e alcançar a luz.
— Luz? Que luz?
— Um mundo de luz.
— Ahahahahahahahahahahahaha!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
A risada do guardião foi tão profunda e pungente que tremeu até mesmo a pedreira sob os pés de Josiel, este, então, perguntou ao guardião:
— Por que o senhor deu esta risada tão forte?
— Para não chorar com a ilusão de tantos de vocês, os umbandistas.
— Ilusão?
— Sim, a ilusão de acharem que antes de encarnarem vieram de um plano espiritual elevado e que a ele retornarão quando desencarnarem se desempenharem a missão de vocês de forma satisfatória.
— ..................
— O teu silencio é revelador, entretanto a Lei não permite me calar. Entenda companheiro que o umbandista é aquele que procura, quando incorporado ou não, fazer a prática da caridade dentro dos templos religiosos por meio da prática da magia.
— Magia?
— É, a utilização de poderes mágicos em prol do próximo, afinal, a fumaça de um cachimbo, um charuto é ou não é magia?
— É sim senhor.
— O uso de bebidas é ou não é magia?
— É sim senhor.
— O uso de velas é ou não é magia?
— É sim senhor.
— Acho que não preciso continuar não é?
— Certamente que não.
— Agora me responda: Por que a grande maioria dos umbandistas não estranha o uso destes instrumentos mágicos, entre outros, seja por parte das entidades que os assistem, seja daquelas que incorporam nos demais médiuns da corrente mediúnica a que pertençam?
— Sinceramente não sei, agora o senhor me falando tudo isto me fez pensar que a primeira impressão que tive ao adentrar pela primeira vez um centro de umbanda era que tudo aquilo ali me era familiar.
— Perfeito. Tal familiaridade aconteceu contigo, como acontece com a maior parte dos umbandistas, por que em encarnações pregressas vocês também conheciam a magia; muitos até dela se utilizaram em algum momento da vida ou em vários, para prejudicarem o próximo, entende?
— Entendo sim senhor.
— Vocês, de forma geral, não estranham o uso e a prática da magia por que muito recorreram a ela em vidas passadas.
— É custoso crer que todos nós umbandistas fomos magos negros em encarnações passadas.
— Eu não disse todos, disse a grande maioria. De mais a mais a magia ( tanto para o bem quanto para o mal ) está no mental de cada ser humano assim, inveja é magia negra, maledicência é magia negra, cobiçar ardentemente a mulher do próximo é magia negra, odiar é praticar magia negra e assim por diante.
— Meu Deus do céu!!!
— Você não deve praticar a caridade esperando como prêmio por esta prática, após o desencarne, a passagem para um plano espiritual elevado. Trabalhe pela caridade tão somente para salvar a sua alma da ignorância acerca da lei de amor e pacificar sua consciência dos malfeitos praticados no passado.
— Pacificar minha consciência?
— Sim, veja o vosso caso, por exemplo. Você sabe por que é extremamente tímido e sensível?
— Não senhor.
— Devo lhe dizer que é porque a consciência do teu espírito não está em paz.
— Como?
— Eu lhe acompanho há muito tempo e sei que nesta encarnação você jamais cometeu atentado algum contra o bem estar do próximo, mas o teu espírito terrivelmente endividado vive a se culpar por erros de encarnações pretéritas. Quando esta consciência espiritual estiver em paz você não mais terá esses problemas manifestados de forma tão exacerbada.
— Mas a consciência de outras vidas não é apagada antes do espírito reencarnar?
— A sua consciência foi apagada, mas não a do seu espírito, tamanhos foram os erros das suas vidas pretéritas.
— O senhor me desculpe, mas fica difícil acreditar no que diz.
— companheiro você também me desculpe, mas não estou aqui para que creia em mim, haja vista que nada sou. A lei divina aqui me permitiu estar contigo para que acredites verdadeiramente em Deus.
— Mas eu creio em Deus!
— Então por que desejas sair do terreiro que freqüentas?
— Mas o meu crer em Deus nada tem a ver com o fato de eu desejar sair do terreiro.
— Ahahahahahahahahah!!!!!!!!!!!!
Gargalhou exasperadamente o guardião para depois prosseguir:
— Não? Então por que desejas sair do terreiro?
— Por que neste terreiro que freqüento sou acusado por meus próprios irmãos de fé de tudo quanto é coisa, muitos deles se consideram profundos conhecedores de meu comportamento e de minha consciência e julgam cada um de meus gestos e atitudes como se tivessem conhecimento de causa.
— Eles já lhe disseram isso?
— Não, mas penso que gestos valem mais do que mil palavras e eu também, de alguma forma, consigo sentir o que vai ao coração deles.
— E você, procurando a perfeição na Terra, começará a sua busca pelo terreiro perfeito?
As palavras diretas do exu fizeram com que Josiel olhasse duramente para ele que, assim, retomou o dialogo:
— A sua interpretação dos gestos e do que vai ao coração dos seus irmãos de fé não está equivocada; entretanto devo lhe repetir que você só consegue sentir o que vai ao coração deles e se intimidar cada vez mais devido ao seu sentimento de culpa em relação ao passado tendo em vista que somente aquele que deve pode sentir-se culpado.
— Não consigo entender suas palavras!
— Isto acontece porque você não entende a si próprio, mas como você mesmo disse “ um gesto vale mais do que mil palavras”, então sente-se nesta cadeira atrás de você!!!
Josuel estava extremamente desconfiado, mas a sincera autoridade que aquele ser lhe impunha fez com que ele se assentasse; o exu, então, retomou o diálogo:
— Não seja desconfiado! Não pense que foi trazido até aqui para ser demovido da idéia de deixar o terreiro que freqüentas, pois isto lhe faria prisioneiro de si próprio; na verdade você está aqui para conhecer um pouco mais a si mesmo a fim de que assim, quem sabe, possa se libertar da culpabilidade espírito-psicológica que o torna um ser tão escravo de suas culpas das vidas passadas. Feche os seus olhos e esvazie sua mente de todo e qualquer pensamento!!!
Foi após proferir esta determinação para Josiel que o guardião, ajoelhado na frente dele, segurou-lhe as mãos em forma de “X” e deu um grande suspiro.
A partir deste instante, sem saber como, uma série de imagens incontroláveis a sua vontade, passaram a desfilar na mente dele.
Josiel então se viu como um sumo-sacerdote do legendário império assírio na transição do reinado de Assurbanipal para o sucessor deste.
O nome de Josiel nesta encarnação era Sejernastides, um homem de letras que, não obstante ser o mais alto servidor do império com funções religiosas, foi o grande idealizador da grande biblioteca do império assírio, àquela cujos livros com escritas cuneiformes seriam o maior legado para posteridade da forma de viver dos povos da Mesopotâmia.
Entretanto, apesar de sua mente brilhante, Sejernastides fora um homem que após muitos anos usando de práticas de magia negra não apenas a favor do império, mas principalmente a favor de si próprio começou a ser sugestionado por poderosos entes trevosos que o manipulavam a tornar-se mais forte e poderoso através da desvirginizaçao e posterior sacrifício de crianças.
E foi assim que ele, após três anos na prática nefasta e cruel de violação sexual e assassinato de crianças, perdeu de forma completa o maior e ultimo dos poderes que o tornara tão imensamente famoso em todo o império: o dom oracular da premonição. Assurbanipal já não vivia mais quando este fato ocorreu.
Sejernastides ao invés de comunicar esta ocorrência ao rei preferiu se omitir e continuar realizando oráculos; acontece que em um dia, ao praticar o oráculo e dizer que todo o exército imperial deveria invadir um reino distante com posição geográfica estratégica para aumentar a extensão do império ele acabou atuando involuntariamente como o catalisador do principio do fim do grande império assírio, pois três meses após esta “premoniçao oracular”, enquanto a maior parte do exército imperial estava a léguas e léguas da capital Assur, esta foi violentamente atacada por caldeus e outros povos que já se encontravam por muito tempo oprimidos por este sanguinário império.
O tempo passou velozmente na mente de Josiel e ele pôde ver quando, enquanto Sejernastides, fora violentamente forçado a presenciar o assassinato brutal, esquartejamento e decapitação de cada um dos cento e vinte funcionários do templo e de seus tutelados mais diretos.
Sejernastides sabia que o grande império assírio não duraria por muito mais tempo e foi desta forma que ele, replete de arrependimentos, foi levado como prisioneiro e encarcerado. Um dia, cinco anos após estes fatos e ainda encarcerado, ao ver o império se desmanchando a passos largos, Sejernastides, numa terrível situação de remorso suicidou-se através do enforcamento.
Após a ocorrência destes últimos fatos se passarem em sua tela mental, Josiel queria chorar, mexer-se e abrir os olhos, mas não conseguia e o exu, assim, falou-lhe mentalmente:
— Concentre-se companheiro, pois minha tarefa ainda não terminou!
Josiel, também mentalmente, respondeu ao guardião:
— Pelo amor de Deus, pare com este castigo!!!
— Quando a Lei Divina faculta-me o direito eu certamente puno os devedores Dela, mas entenda que este não é o seu caso, eu não o estou punindo, mas exercendo a tarefa que me foi ordenada pelo seu anjo de guarda e que eu, sem queixumes e satisfeito por estar labutando em prol da Justiça Maior, devo exercer. Tenha humildade, paciência e concentre-se, pois minha tarefa está quase no fim.
Assimilando o sentido de ordem daquele guardião Josiel pôs-se a concentrar-se e a se ver em sua ultima encarnação como um escravo jamaicano do Brasil - colônia que ao invés de aproveitar a oportunidade redentora para auxiliar aos seus irmãos de sina e senzala com palavras e atitudes confortadoras e, principalmente, com a utilização de ervas e feitiços; fez exatamente o contrário e utilizou estes últimos para, em seus sessenta e cinco anos de vida, prejudicar terrivelmente quase uma centena de pessoas.
E após estes últimos fatos o guardião retirou suas mãos das mãos de Josiel, ordenou que ele abrisse os olhos e aguardou a visualização da cena que ele já se acostumara a presenciar:
Josiel, poucos minutos após abrir os olhos e retornar a si, caiu em um pranto convulsivo tão sentido e verdadeiro que levaria as lágrimas qualquer espírito que presenciasse aquela cena, no entanto, dos olhos do guardião a frente dele não havia o menor resquício de uma lagrima sequer e, se olhássemos um pouco mais abaixo na face do guardião, por mais estranho que possa parecer, veríamos até mesmo o esboço de um sorriso: é que poucas coisas trazem tanto contentamento a um exu do que quando ele vê um ser humano reconhecer a pequeneza de si próprio diante da infinita sabedoria e excelsa misericórdia do Divino Criador.
Após serenar as emoções, Josiel disse ao guardião:
— Então foi por isso que reencarnei umbandista, para expiar os meus erros crassos praticados com o uso da magia em vidas anteriores?
— Não apenas estes erros, mas principalmente.
— No terreiro que freqüento, o corpo mediúnico é composto daqueles antigos servidores assírios assassinados por conta de minha vaidade e imprudência?
— Isto não importa!!! Você não deve achar este tipo de justificativa para permanecer ou abandonar o terreiro que freqüenta, o importante é você entender que cinco daqueles seus antigos servidores trabalham no terreiro que você freqüenta como entidades espirituais.
— Meu Deus, eles evoluíram tanto!!!
— Evoluíram e querem que você e seus irmãos por paternidade divina também evoluam pela prática da caridade.
— Meu deus!!! Eu, um umbandista, que nesta encarnação nunca fiz mal a ninguém, jamais poderia pensar que sou um espírito tão imperfeito e devedor!!!
— Não só você companheiro. Já disse e repito: raros são os umbandistas que são de hierarquia espiritual elevada,; na verdade, quase todos ainda são espíritos em encarnações de provas e expiações, melhor dizendo, quase todos os espíritos sob a face da terra, independente da religião que professem, são espíritos ainda em encarnações de provas e expiações.
— Entendo.
— Agora Josiel seja honesto comigo e diga se não é verdade que você pensa em sair do terreiro que freqüentas por julgar que seus irmãos de fé têm a ingratidão para com você; ou melhor ainda, por vê-los praticar esta ingratidão contra ti na forma de gestos e comentários a seu respeito.
— Serei honesto: é verdade!
— Este exu que vos fala não é nenhum espírito perfeito, mas devo dizer que procuro executar o meu trabalho a favor da Lei Maior e da Justiça Divina de uma maneira surda tanto para a gratidão quanto para a ingratidão.
— Como?
— Sou surdo para a gratidão por que não trabalho para recebê-la, mas para evoluir. Só o Divino Criador é digno de toda gratidão, honra e louvor.
— Entendo.
— Também sou surdo para a ingratidão por que quem tem o dever de escutar cada um dos impropérios que me forem dirigidos e julgar a cada um conforme a sua obra também é o divino criador.
— Então quer dizer que o senhor trabalha para a caridade de uma forma surda?
— Surda para a gratidão e ingratidão, ouvinte apenas de minha consciência a me dizer que é praticando a caridade que terei cada vez mais paz no meu mental e emocional.
— Meu Deus, o senhor me disse que é um exu e quantas coisas lindas acabou de me dizer, o senhor é um sábio, obrigado por me ajudar!
— Como? Não ouvi!!!
— Obrigado!
— Como?
— Obrigado!
— Como? Bem não importa, pois se não estou escutando certamente deve ser por que você se esqueceu de que sou surdo a gratidões e ingratidões.
Josiel riu a valer e depois perguntou ao exu:
— O senhor tem mais algo a dizer para mim?
— A você devo dizer que quando despertar em sua cama esquecerá por completo dos fatos relativos a estas duas de suas vidas passadas que você presenciou esta noite. Sua consciência esquecerá de tudo, mas a partir do instante que você acordar seu inconsciente estará sempre a lhe cobrar que procure a perfeição dentro de si mesmo e não no próximo.
— Entendo.
— A você e a todos os seus irmãos umbandistas, a Lei Maior e a Justiça Divina só me permitem adverti-los que vocês, ao sentirem a ingratidão, não devem usa-la como dispositivo para esmorecerem na fé e na prática da caridade façam, antes, como os grandes mártires do cristianismo e procurem usa-la como bússola a lhes indicarem que estão no caminho certo da prática da caridade a fim de evoluírem em direção a Deus.
O guardião fixou ainda mais os olhos nos olhos de Josiel e continuou a dizer:
— Recordem todos vós que se sentem injustiçados por serem vitimas de ingratidão das vivificantes palavras de Jesus: “Bem aventurados sejam todos aqueles que forem perseguidos por amor ao meu nome”. Não reclamem de ingratidão, sigam os exemplos de Jesus, pois nenhum espírito na face da Terra sofreu mais do que ele pela má ação da própria humanidade que ele viera salvar e, mesmo assim, em nenhum momento de seu martírio Jesus sentiu-se vitima de ingratidão por toda humilhação e sofrimento a que foi acometido, muito pelo contrário Jesus, ao invés de ingratidão tinha era piedade daqueles que lhe maltratavam, por que era conhecedor de quantas provas e expiações eles deveriam passar em futuras encarnações para descobrirem que a verdadeira felicidade não está em humilhar e destruir aqueles que pensam diferente de você, mas dentro de cada um!!!
Josiel escutava aquele guardião falar com tanto vigor e verdade sobre Jesus que se encontrava imensamente emocionado em todas as fibras de seu ser e, enquanto isso, o guardião continuava a falar:
— Na verdade, desde àquela época até os dias de hoje, Jesus tinha uma incomensurável piedade pela ignorância humana. O ignorante é aquele que ignora as regras globais de funcionamento da vida como um todo para tentar, de uma forma ou de outra, fazer com que ela seja vista e interpretada de acordo com suas idiossincrasias. Muitos ignorantes fazem valer suas opiniões por meio das palavras, outros, um pouco mais severos, usam de coerção enquanto que ainda outros utilizam quaisquer tipos de violência para que muitos vejam as cores do arco-íris da vida pelo seu prisma.
Josiel só escutava emocionado e intimamente transformado as palavras daquele exu que continuava a lhe comunicar:
— E Jesus, um excelso espírito em humildade e amor jamais rebateu qualquer uma das criticas que sofreu, jamais violentou sua natureza dócil e simples para fazer com que qualquer pessoa aceitasse as verdades das idéias que constituem o Evangelho. A melhor resposta que Jesus ofertava aos críticos era o trabalho através de suas palavras e ações convocando-os para a prática da Lei de amor. Jesus é o bem e o bem jamais violenta a natureza intima de qualquer pessoa para afirmar suas convicções. Você quer ser um bom médium Josiel?
— Sim senhor!
— Então procure agir como Jesus e não sofra de ingratidão pelas criticas daqueles irmãos de fé que se sentem os senhores da verdade a cerca do seu comportamento ou de qualquer outra coisa, apenas trabalhe porque, como você mesmo disse a esse exu nesta noite, “um gesto vale mais do que mil palavras”; enfim, deixe que suas ações falem por você, está entendendo?
— Sim senhor!
— Uma ultima coisa a ser dita para a sua reflexão: se os terreiros são feitos por homens e estes são imperfeitos, como encontrar o terreiro perfeito?
Ao despertar em seu leito na manhã seguinte Josiel só tinha consciência de uma frase que escutara durante sua noite de sono: “se os terreiros são feitos por homens e estes são imperfeitos, como encontrar o terreiro perfeito?”.
Esta frase mudou a vida dele de tal forma que dez anos após este sonho Josiel ainda estava trabalhando no mesmo terreiro de que certa vez pensara em sair a descobrir, a cada gira que participava, que a perfeição é um ideal possível somente pela prática da caridade, pois somente ela aproxima cada filho de fé da perfeição absoluta que vem de Deus.
Em sua forma de pensar continuar a freqüentar o terreiro tornara-se impossível, pois, segundo ele, em um local onde reina a fofoca e a maledicência Jesus e a caridade não poderiam se manifestar.
Não pensem que Josiel era um espírito desprovido de autocrítica. Não, era o oposto!!! Josiel criticava a si próprio de uma maneira até demasiada; tinha consciência que era um espírito em expiação para tentar sanar erros praticados em encarnações pretéritas.
Não possuía, assim como acontece com a grande maioria dos encarnados, a mínima noção dos erros que praticara em encarnações pretéritas, mas tinha a plena convicção que a prática da caridade seria a única forma de tentar corrigi-los.
Ah, meus amigos como era difícil para Josiel à prática da caridade!!! Mas não se espantem por que a dificuldade desta prática redentora não era devido ao orgulho e egoísmo exacerbados; muito pelo contrário, ele era um espírito até generoso.
Não meus irmãos, a dificuldade do exercício da caridade para Josiel se dava pela impossibilidade dele, assim como ocorre com qualquer pessoa, pratica-la sozinho. Não, por favor, não estranhem o comportamento de Josiel, pois poucos espíritos são mais tímidos e sensíveis à energia do próximo do que ele.
Fora o divino mestre Jesus quem ensinara que onde estivessem duas ou mais pessoas reunidas em nome Dele ele estaria presente; também fora Jesus quem escolhera doze apóstolos para auxiliá-lo a pregar a Boa Nova; ou seja, o mestre divino sempre ensinara que a caridade deveria ser praticada em beneficio ao próximo, pois seria somente dando que se teria a possibilidade de recebê-la de volta e evoluir junto a Deus.
Imaginem companheiros alguém ter a clareza da necessidade de se buscar a fraternidade em prol da caridade, mas sentir uma extrema dificuldade para tanto, seja por sua enorme timidez ou pela imensa facilidade de, apenas pela proximidade, sentir o que vai ao coração e na mente do ser humano.
Aliás, desde cedo, mesmo quando professara outras religiões, todas estas foram unânimes em afirmar que aquela extrema sensibilidade seria ou um problema neurológico ou um ataque do demônio; seus pais, assim, submeteram-no tanto às práticas médicas quanto à algumas práticas religiosas sem conseguirem resultado algum.
Foi somente quando se tornou umbandista que Josiel passou a enxergar sua extrema sensibilidade não como uma maldição, mas como um dom. Josiel descobrira-se não doente ou endemoniado, mas tão somente médium; descobrira também que somente utilizando o exercício da mediunidade em favor da caridade é que ele encontraria alguma luz que clareasse os seus caminhos na estrada que leva a evolução junto a Deus.
Josiel pensava que havia encontrado a religião perfeita praticada em um terreiro perfeito e por pessoas perfeitas.
Cinco anos se passaram desde a entrada dele no terreiro e é quando podemos vê-lo retornar para o conforto de sua residência totalmente convicto de que, no dia seguinte, pediria desligamento daquele centro umbandista e partiria em busca de outro.
Tomou um banho relaxante, deitou em sua cama confortável e não foram necessários muitos minutos para que seu duplo se desprendesse parcialmente do corpo físico.
Josiel não sabia, mas estava sendo guiado para junto de uma pedreira em mata aberta para receber instruções do seu exu de trabalho no ritual de umbanda.
Chegando ao local indicado, Josiel viu um ser de mais de dois metros de altura e roupas pretas que irradiavam um estranho magnetismo sentado em uma espécie de cadeira de cor prateada localizada em cima da pedreira.
Só de olhar para aqueles dois olhos grandes negros e penetrantes Josiel entendeu que deveria subir aquela pedreira e ficar diante daquele ser; então, sem pensar duas vezes, Josiel caminhou em direção a ele e ajoelhou-se respeitosamente diante daquele ser.
— Levante-se!
Josiel obedeceu prontamente.
— Sabe quem sou eu?
— Não senhor.
— Sabe o que faz aqui?
— Não senhor.
O guardião então soltou uma sonora e gutural gargalhada para depois dizer:
— Aquele que não sabe quem é e nem para onde vai me parece que está perdido.
— O senhor me desculpe, mas eu sei quem sou.
— Sabe?
— Sim senhor!
— Quem é você?
— Sou Josiel.
— Não. Esta resposta prova que você sabe qual é o seu nome, eu quero saber quem é você.
Vendo o silêncio pertubador de Josiel o guardião tornou a gargalhar:
— Ahahahahahahah!!! Complexa esta questão de identidade não é companheiro?
— Sim senhor, mas...
— Prossiga!!!
— ... pelo menos eu sei para onde vou!
— Tem certeza?
— Absoluta.
— Para onde você vai?
— Para um outro terreiro. Um terreiro que também pratique a caridade, mas onde não se julgue tanto o próximo.
— Você procura um terreiro perfeito?
Diante do silêncio de Josiel o guardião continuou:
— Companheiro, sou um exu e devo lhe perguntar: que terreiro você procura?
— Um terreiro com pessoas perfectíveis.
— Responda-me: Jesus quando encarnado viveu dentro de templos religiosos ou junto das imperfeições de prostitutas, ladrões e malfeitores?
— Mas Jesus convivia com estes malfeitores para levar a perfeição do amor de Deus até elas.
— Concordo, mas ele realizava esta tarefa sozinho?
— Não, ele era auxiliado principalmente por seus apóstolos.
— Os apóstolos eram perfeitos?
— Não, mas Jesus sabia que podia contar com cada um deles porque tinha certeza que nenhum falharia em sua tarefa.
— Você se engana companheiro: Pedro era impulsivo, Tiago esperava sempre mais ver para depois crer e eu poderia continuar tecendo comentários sobre as dificuldades humanas dos demais apóstolos só para que você entenda que Jesus não tinha a certeza de que cada um dos apóstolos não falharia em suas missões; Jesus tinha a esperança que o amor dos apóstolos à obra de Deus seria maior que suas imperfeições e que esse amor os auxiliariam a não falhar no desempenho de suas missões.
— Entendo.
— Jesus tinha esperança e não certeza.
— Entendo.
— A mesma esperança que tem em você e em cada um de seus irmãos que compõem a humanidade.
— Entendo.
— Esperança de que cada um de vocês não falhe na missão de praticar a caridade.
— Entendo o que o senhor quer dizer, realmente não devemos medir esforços para praticar a caridade e alcançar a luz.
— Luz? Que luz?
— Um mundo de luz.
— Ahahahahahahahahahahahaha!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
A risada do guardião foi tão profunda e pungente que tremeu até mesmo a pedreira sob os pés de Josiel, este, então, perguntou ao guardião:
— Por que o senhor deu esta risada tão forte?
— Para não chorar com a ilusão de tantos de vocês, os umbandistas.
— Ilusão?
— Sim, a ilusão de acharem que antes de encarnarem vieram de um plano espiritual elevado e que a ele retornarão quando desencarnarem se desempenharem a missão de vocês de forma satisfatória.
— ..................
— O teu silencio é revelador, entretanto a Lei não permite me calar. Entenda companheiro que o umbandista é aquele que procura, quando incorporado ou não, fazer a prática da caridade dentro dos templos religiosos por meio da prática da magia.
— Magia?
— É, a utilização de poderes mágicos em prol do próximo, afinal, a fumaça de um cachimbo, um charuto é ou não é magia?
— É sim senhor.
— O uso de bebidas é ou não é magia?
— É sim senhor.
— O uso de velas é ou não é magia?
— É sim senhor.
— Acho que não preciso continuar não é?
— Certamente que não.
— Agora me responda: Por que a grande maioria dos umbandistas não estranha o uso destes instrumentos mágicos, entre outros, seja por parte das entidades que os assistem, seja daquelas que incorporam nos demais médiuns da corrente mediúnica a que pertençam?
— Sinceramente não sei, agora o senhor me falando tudo isto me fez pensar que a primeira impressão que tive ao adentrar pela primeira vez um centro de umbanda era que tudo aquilo ali me era familiar.
— Perfeito. Tal familiaridade aconteceu contigo, como acontece com a maior parte dos umbandistas, por que em encarnações pregressas vocês também conheciam a magia; muitos até dela se utilizaram em algum momento da vida ou em vários, para prejudicarem o próximo, entende?
— Entendo sim senhor.
— Vocês, de forma geral, não estranham o uso e a prática da magia por que muito recorreram a ela em vidas passadas.
— É custoso crer que todos nós umbandistas fomos magos negros em encarnações passadas.
— Eu não disse todos, disse a grande maioria. De mais a mais a magia ( tanto para o bem quanto para o mal ) está no mental de cada ser humano assim, inveja é magia negra, maledicência é magia negra, cobiçar ardentemente a mulher do próximo é magia negra, odiar é praticar magia negra e assim por diante.
— Meu Deus do céu!!!
— Você não deve praticar a caridade esperando como prêmio por esta prática, após o desencarne, a passagem para um plano espiritual elevado. Trabalhe pela caridade tão somente para salvar a sua alma da ignorância acerca da lei de amor e pacificar sua consciência dos malfeitos praticados no passado.
— Pacificar minha consciência?
— Sim, veja o vosso caso, por exemplo. Você sabe por que é extremamente tímido e sensível?
— Não senhor.
— Devo lhe dizer que é porque a consciência do teu espírito não está em paz.
— Como?
— Eu lhe acompanho há muito tempo e sei que nesta encarnação você jamais cometeu atentado algum contra o bem estar do próximo, mas o teu espírito terrivelmente endividado vive a se culpar por erros de encarnações pretéritas. Quando esta consciência espiritual estiver em paz você não mais terá esses problemas manifestados de forma tão exacerbada.
— Mas a consciência de outras vidas não é apagada antes do espírito reencarnar?
— A sua consciência foi apagada, mas não a do seu espírito, tamanhos foram os erros das suas vidas pretéritas.
— O senhor me desculpe, mas fica difícil acreditar no que diz.
— companheiro você também me desculpe, mas não estou aqui para que creia em mim, haja vista que nada sou. A lei divina aqui me permitiu estar contigo para que acredites verdadeiramente em Deus.
— Mas eu creio em Deus!
— Então por que desejas sair do terreiro que freqüentas?
— Mas o meu crer em Deus nada tem a ver com o fato de eu desejar sair do terreiro.
— Ahahahahahahahahah!!!!!!!!!!!!
Gargalhou exasperadamente o guardião para depois prosseguir:
— Não? Então por que desejas sair do terreiro?
— Por que neste terreiro que freqüento sou acusado por meus próprios irmãos de fé de tudo quanto é coisa, muitos deles se consideram profundos conhecedores de meu comportamento e de minha consciência e julgam cada um de meus gestos e atitudes como se tivessem conhecimento de causa.
— Eles já lhe disseram isso?
— Não, mas penso que gestos valem mais do que mil palavras e eu também, de alguma forma, consigo sentir o que vai ao coração deles.
— E você, procurando a perfeição na Terra, começará a sua busca pelo terreiro perfeito?
As palavras diretas do exu fizeram com que Josiel olhasse duramente para ele que, assim, retomou o dialogo:
— A sua interpretação dos gestos e do que vai ao coração dos seus irmãos de fé não está equivocada; entretanto devo lhe repetir que você só consegue sentir o que vai ao coração deles e se intimidar cada vez mais devido ao seu sentimento de culpa em relação ao passado tendo em vista que somente aquele que deve pode sentir-se culpado.
— Não consigo entender suas palavras!
— Isto acontece porque você não entende a si próprio, mas como você mesmo disse “ um gesto vale mais do que mil palavras”, então sente-se nesta cadeira atrás de você!!!
Josuel estava extremamente desconfiado, mas a sincera autoridade que aquele ser lhe impunha fez com que ele se assentasse; o exu, então, retomou o diálogo:
— Não seja desconfiado! Não pense que foi trazido até aqui para ser demovido da idéia de deixar o terreiro que freqüentas, pois isto lhe faria prisioneiro de si próprio; na verdade você está aqui para conhecer um pouco mais a si mesmo a fim de que assim, quem sabe, possa se libertar da culpabilidade espírito-psicológica que o torna um ser tão escravo de suas culpas das vidas passadas. Feche os seus olhos e esvazie sua mente de todo e qualquer pensamento!!!
Foi após proferir esta determinação para Josiel que o guardião, ajoelhado na frente dele, segurou-lhe as mãos em forma de “X” e deu um grande suspiro.
A partir deste instante, sem saber como, uma série de imagens incontroláveis a sua vontade, passaram a desfilar na mente dele.
Josiel então se viu como um sumo-sacerdote do legendário império assírio na transição do reinado de Assurbanipal para o sucessor deste.
O nome de Josiel nesta encarnação era Sejernastides, um homem de letras que, não obstante ser o mais alto servidor do império com funções religiosas, foi o grande idealizador da grande biblioteca do império assírio, àquela cujos livros com escritas cuneiformes seriam o maior legado para posteridade da forma de viver dos povos da Mesopotâmia.
Entretanto, apesar de sua mente brilhante, Sejernastides fora um homem que após muitos anos usando de práticas de magia negra não apenas a favor do império, mas principalmente a favor de si próprio começou a ser sugestionado por poderosos entes trevosos que o manipulavam a tornar-se mais forte e poderoso através da desvirginizaçao e posterior sacrifício de crianças.
E foi assim que ele, após três anos na prática nefasta e cruel de violação sexual e assassinato de crianças, perdeu de forma completa o maior e ultimo dos poderes que o tornara tão imensamente famoso em todo o império: o dom oracular da premonição. Assurbanipal já não vivia mais quando este fato ocorreu.
Sejernastides ao invés de comunicar esta ocorrência ao rei preferiu se omitir e continuar realizando oráculos; acontece que em um dia, ao praticar o oráculo e dizer que todo o exército imperial deveria invadir um reino distante com posição geográfica estratégica para aumentar a extensão do império ele acabou atuando involuntariamente como o catalisador do principio do fim do grande império assírio, pois três meses após esta “premoniçao oracular”, enquanto a maior parte do exército imperial estava a léguas e léguas da capital Assur, esta foi violentamente atacada por caldeus e outros povos que já se encontravam por muito tempo oprimidos por este sanguinário império.
O tempo passou velozmente na mente de Josiel e ele pôde ver quando, enquanto Sejernastides, fora violentamente forçado a presenciar o assassinato brutal, esquartejamento e decapitação de cada um dos cento e vinte funcionários do templo e de seus tutelados mais diretos.
Sejernastides sabia que o grande império assírio não duraria por muito mais tempo e foi desta forma que ele, replete de arrependimentos, foi levado como prisioneiro e encarcerado. Um dia, cinco anos após estes fatos e ainda encarcerado, ao ver o império se desmanchando a passos largos, Sejernastides, numa terrível situação de remorso suicidou-se através do enforcamento.
Após a ocorrência destes últimos fatos se passarem em sua tela mental, Josiel queria chorar, mexer-se e abrir os olhos, mas não conseguia e o exu, assim, falou-lhe mentalmente:
— Concentre-se companheiro, pois minha tarefa ainda não terminou!
Josiel, também mentalmente, respondeu ao guardião:
— Pelo amor de Deus, pare com este castigo!!!
— Quando a Lei Divina faculta-me o direito eu certamente puno os devedores Dela, mas entenda que este não é o seu caso, eu não o estou punindo, mas exercendo a tarefa que me foi ordenada pelo seu anjo de guarda e que eu, sem queixumes e satisfeito por estar labutando em prol da Justiça Maior, devo exercer. Tenha humildade, paciência e concentre-se, pois minha tarefa está quase no fim.
Assimilando o sentido de ordem daquele guardião Josiel pôs-se a concentrar-se e a se ver em sua ultima encarnação como um escravo jamaicano do Brasil - colônia que ao invés de aproveitar a oportunidade redentora para auxiliar aos seus irmãos de sina e senzala com palavras e atitudes confortadoras e, principalmente, com a utilização de ervas e feitiços; fez exatamente o contrário e utilizou estes últimos para, em seus sessenta e cinco anos de vida, prejudicar terrivelmente quase uma centena de pessoas.
E após estes últimos fatos o guardião retirou suas mãos das mãos de Josiel, ordenou que ele abrisse os olhos e aguardou a visualização da cena que ele já se acostumara a presenciar:
Josiel, poucos minutos após abrir os olhos e retornar a si, caiu em um pranto convulsivo tão sentido e verdadeiro que levaria as lágrimas qualquer espírito que presenciasse aquela cena, no entanto, dos olhos do guardião a frente dele não havia o menor resquício de uma lagrima sequer e, se olhássemos um pouco mais abaixo na face do guardião, por mais estranho que possa parecer, veríamos até mesmo o esboço de um sorriso: é que poucas coisas trazem tanto contentamento a um exu do que quando ele vê um ser humano reconhecer a pequeneza de si próprio diante da infinita sabedoria e excelsa misericórdia do Divino Criador.
Após serenar as emoções, Josiel disse ao guardião:
— Então foi por isso que reencarnei umbandista, para expiar os meus erros crassos praticados com o uso da magia em vidas anteriores?
— Não apenas estes erros, mas principalmente.
— No terreiro que freqüento, o corpo mediúnico é composto daqueles antigos servidores assírios assassinados por conta de minha vaidade e imprudência?
— Isto não importa!!! Você não deve achar este tipo de justificativa para permanecer ou abandonar o terreiro que freqüenta, o importante é você entender que cinco daqueles seus antigos servidores trabalham no terreiro que você freqüenta como entidades espirituais.
— Meu Deus, eles evoluíram tanto!!!
— Evoluíram e querem que você e seus irmãos por paternidade divina também evoluam pela prática da caridade.
— Meu deus!!! Eu, um umbandista, que nesta encarnação nunca fiz mal a ninguém, jamais poderia pensar que sou um espírito tão imperfeito e devedor!!!
— Não só você companheiro. Já disse e repito: raros são os umbandistas que são de hierarquia espiritual elevada,; na verdade, quase todos ainda são espíritos em encarnações de provas e expiações, melhor dizendo, quase todos os espíritos sob a face da terra, independente da religião que professem, são espíritos ainda em encarnações de provas e expiações.
— Entendo.
— Agora Josiel seja honesto comigo e diga se não é verdade que você pensa em sair do terreiro que freqüentas por julgar que seus irmãos de fé têm a ingratidão para com você; ou melhor ainda, por vê-los praticar esta ingratidão contra ti na forma de gestos e comentários a seu respeito.
— Serei honesto: é verdade!
— Este exu que vos fala não é nenhum espírito perfeito, mas devo dizer que procuro executar o meu trabalho a favor da Lei Maior e da Justiça Divina de uma maneira surda tanto para a gratidão quanto para a ingratidão.
— Como?
— Sou surdo para a gratidão por que não trabalho para recebê-la, mas para evoluir. Só o Divino Criador é digno de toda gratidão, honra e louvor.
— Entendo.
— Também sou surdo para a ingratidão por que quem tem o dever de escutar cada um dos impropérios que me forem dirigidos e julgar a cada um conforme a sua obra também é o divino criador.
— Então quer dizer que o senhor trabalha para a caridade de uma forma surda?
— Surda para a gratidão e ingratidão, ouvinte apenas de minha consciência a me dizer que é praticando a caridade que terei cada vez mais paz no meu mental e emocional.
— Meu Deus, o senhor me disse que é um exu e quantas coisas lindas acabou de me dizer, o senhor é um sábio, obrigado por me ajudar!
— Como? Não ouvi!!!
— Obrigado!
— Como?
— Obrigado!
— Como? Bem não importa, pois se não estou escutando certamente deve ser por que você se esqueceu de que sou surdo a gratidões e ingratidões.
Josiel riu a valer e depois perguntou ao exu:
— O senhor tem mais algo a dizer para mim?
— A você devo dizer que quando despertar em sua cama esquecerá por completo dos fatos relativos a estas duas de suas vidas passadas que você presenciou esta noite. Sua consciência esquecerá de tudo, mas a partir do instante que você acordar seu inconsciente estará sempre a lhe cobrar que procure a perfeição dentro de si mesmo e não no próximo.
— Entendo.
— A você e a todos os seus irmãos umbandistas, a Lei Maior e a Justiça Divina só me permitem adverti-los que vocês, ao sentirem a ingratidão, não devem usa-la como dispositivo para esmorecerem na fé e na prática da caridade façam, antes, como os grandes mártires do cristianismo e procurem usa-la como bússola a lhes indicarem que estão no caminho certo da prática da caridade a fim de evoluírem em direção a Deus.
O guardião fixou ainda mais os olhos nos olhos de Josiel e continuou a dizer:
— Recordem todos vós que se sentem injustiçados por serem vitimas de ingratidão das vivificantes palavras de Jesus: “Bem aventurados sejam todos aqueles que forem perseguidos por amor ao meu nome”. Não reclamem de ingratidão, sigam os exemplos de Jesus, pois nenhum espírito na face da Terra sofreu mais do que ele pela má ação da própria humanidade que ele viera salvar e, mesmo assim, em nenhum momento de seu martírio Jesus sentiu-se vitima de ingratidão por toda humilhação e sofrimento a que foi acometido, muito pelo contrário Jesus, ao invés de ingratidão tinha era piedade daqueles que lhe maltratavam, por que era conhecedor de quantas provas e expiações eles deveriam passar em futuras encarnações para descobrirem que a verdadeira felicidade não está em humilhar e destruir aqueles que pensam diferente de você, mas dentro de cada um!!!
Josiel escutava aquele guardião falar com tanto vigor e verdade sobre Jesus que se encontrava imensamente emocionado em todas as fibras de seu ser e, enquanto isso, o guardião continuava a falar:
— Na verdade, desde àquela época até os dias de hoje, Jesus tinha uma incomensurável piedade pela ignorância humana. O ignorante é aquele que ignora as regras globais de funcionamento da vida como um todo para tentar, de uma forma ou de outra, fazer com que ela seja vista e interpretada de acordo com suas idiossincrasias. Muitos ignorantes fazem valer suas opiniões por meio das palavras, outros, um pouco mais severos, usam de coerção enquanto que ainda outros utilizam quaisquer tipos de violência para que muitos vejam as cores do arco-íris da vida pelo seu prisma.
Josiel só escutava emocionado e intimamente transformado as palavras daquele exu que continuava a lhe comunicar:
— E Jesus, um excelso espírito em humildade e amor jamais rebateu qualquer uma das criticas que sofreu, jamais violentou sua natureza dócil e simples para fazer com que qualquer pessoa aceitasse as verdades das idéias que constituem o Evangelho. A melhor resposta que Jesus ofertava aos críticos era o trabalho através de suas palavras e ações convocando-os para a prática da Lei de amor. Jesus é o bem e o bem jamais violenta a natureza intima de qualquer pessoa para afirmar suas convicções. Você quer ser um bom médium Josiel?
— Sim senhor!
— Então procure agir como Jesus e não sofra de ingratidão pelas criticas daqueles irmãos de fé que se sentem os senhores da verdade a cerca do seu comportamento ou de qualquer outra coisa, apenas trabalhe porque, como você mesmo disse a esse exu nesta noite, “um gesto vale mais do que mil palavras”; enfim, deixe que suas ações falem por você, está entendendo?
— Sim senhor!
— Uma ultima coisa a ser dita para a sua reflexão: se os terreiros são feitos por homens e estes são imperfeitos, como encontrar o terreiro perfeito?
Ao despertar em seu leito na manhã seguinte Josiel só tinha consciência de uma frase que escutara durante sua noite de sono: “se os terreiros são feitos por homens e estes são imperfeitos, como encontrar o terreiro perfeito?”.
Esta frase mudou a vida dele de tal forma que dez anos após este sonho Josiel ainda estava trabalhando no mesmo terreiro de que certa vez pensara em sair a descobrir, a cada gira que participava, que a perfeição é um ideal possível somente pela prática da caridade, pois somente ela aproxima cada filho de fé da perfeição absoluta que vem de Deus.
Nossa , incrível, me identifiquei muito com essa história, pois realmente não existe Terreiro Perfeito e a mudança começa a partir de nós mesmos.
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