Recordo-me que numa noite fomos à Tenda Espírita do Pai Jerônimo, localizada na rua Barão de Ubá, no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, isso lá pelo início dos anos 70.
Em lá chegando, de forma anônima, pela primeira vez, eu e meu marido fomos levados a uma fila de consultas para uma Preta Velha a fim de que recebêssemos passes.
Essa Preta Velha começou a falar o que para mim pareciam ser "abobrinhas", deixando-me muito chateada. Tomada por esse sentimento diante da humilde servidora espiritual, naquele momento comecei a sentir vibrações. Visto isso, a Velha indagou-me se eu trabalhava em algum Centro. Respondi que não.
Resolvi sair dali e dirigi-me ao quintal da Casa, sendo seguida de Pai Jerônimo que me pedia para que eu não impedisse a incorporação. Eu transpirava muito, relutando e dizendo não, não, não... Eu desejava sair dali, rapidamente.
O dirigente então pegou em minha mão e nesse instante Vovó Maria Conga, como que ignorando meu desejo de não "recebê-la" , chegou bastante aborrecida em razão de minha atitude inadequada para com aquela Preta Velha das "abobrinhas".
Vovó Maria Conga entrou pelo Terreiro e foi até o Congá. Cumprimentou o zelador que lhe perguntou se ela queria trabalhar ali. Vovó respondeu-lhe agradecendo seu convite, mas declinou dizendo que já possuía o seu cantinho. Indo à frente do Congá, despediu-se e foi embora, deixando-me com fortes dores no corpo que me faziam gritar.
Pai Jerônimo, compadecido de meu estado, tentava de todas as maneiras retirar a vibração de cima de mim, mas suas tentativas não tiveram êxito. Voltei à casa desesperada de dores físicas e contrariada com tudo que acontecera. Lá chegando, ela incorporou mais uma vez e novamente muito zangada. Ela falou ao Carlos, meu esposo: "não foi aquilo que eu mandei ela fazer!", "ela não deve testar entidade alguma!", " da próxima vez, se ela tentar repetir aquela atitude, eu a colocarei numa cama de hospital para que aprenda a respeitar qualquer entidade e qualquer Tenda que ela vá!". Essa foi a primeira e a última vez que eu desobedeci a suas ordens. Após isso passei a ter mais respeito e a sentir mais carinho por ela.
Em verdade a ida à Tenda do Pai Jerônimo era o cumprimento de uma ordem que eu recebera de Vovó Maria Conga, de "correr gira" para encontrar um local para que ela pudesse trabalhar. Entretanto, eu desconsiderei as recomendações que ela me dera, as quais representavam o método a ser empregado nesse processo de busca: ouvir, ver e não criticar nada!
Em verdade a ida à Tenda do Pai Jerônimo era o cumprimento de uma ordem que eu recebera de Vovó Maria Conga, de "correr gira" para encontrar um local para que ela pudesse trabalhar. Entretanto, eu desconsiderei as recomendações que ela me dera, as quais representavam o método a ser empregado nesse processo de busca: ouvir, ver e não criticar nada!
Tive a segunda lição, que tento expor em minha singela homenagem aos Pretos Velhos, numa madrugada chuvosa e bem fria - duas horas da manhã!
Forçados pela ordem de Vovó Maria Conga, como disse acima, de visitar possíveis Terreiros onde ela pudesse trabalhar, estávamos eu e marido, acompanhados de um casal amigo Athayde e Cléa, novamente "em campo".
Athayde lembrou da existência de um Terreiro antigo. Este ficava numa rua totalmente deserta e íngreme, de acesso muito difícil, obrigando-nos a segurar nos montes de capim para não cairmos. Até o som dos atabaques que nos facilitaria identificar sua localização não era ouvido por nós. Finalmente olhei e vi um Terreiro grande, de edificação antiga e mal iluminada.
Lá dentro encontramos duas moças sentadas num banco comprido e ao lado do Congá estava um Preto Velho dando uma consulta à outra moça igualmente.
Olhando tudo a nossa volta, percebi que o local não contava nem mesmo com a assistência valiosa de um cambono.
O médium - um negro idoso - vestia o uniforme da Umbanda, uma vestimenta simples e bem surrada, junto com seu chapéu de palha bem castigado pelo tempo. Tudo espelhava humildade: o médium, o uniforme, o chapéu, a rua e a Tenda.
Fui então pedir a bênção desse servidor. Quando curvei-me, senti que a chuva, escapando pelas goteiras da Casa, molhava minhas costas. Nesse momento, que não me sai da mente até hoje, notei que o Velho estava todo molhado. A cena doeu-me na alma e disse ao Preto Velho: "Vovô, o senhor me permite colocar o seu banquinho em outro local que não tenha goteiras?" Ele respondeu: "Filha, olhe para cima e você verá que não há nenhum local onde a chuva não possa penetrar. Tanto faz ficar aqui onde estou ou ir para outro lugar onde você tenha vontade de me colocar - será a mesma coisa!".
Seguindo a sugestão do Preto Velho olhei para cima e vi que o telhado era uma grande peneira!
Calei-me e minhas lágrimas, oriundas do exemplo de abnegação e modéstia do Velho, se misturaram à água da chuva que caía.
Ao fitar-me, falou o Velho: "Não fique assim não minha filha. O teu coração é muito grande, mas nós só podemos fazer aquilo que está ao nosso alcance. O que está passando pela sua cabeça, eu sei que você não pode realizar. A sua visita à essa hora da noite, com chuva e frio, já me mostrou o amor que você tem pela Umbanda e o que eu posso fazer por você, é pedir ao nosso Pai Oxalá que te abençoe, dando a você saúde e força para que você continue na sua busca a fim de cumprir a missão que a minha mana colocou em suas mãos".
Fiquei surpresa, pois eu não fizera nenhum comentário sobre o que a Maria Conga me mandara fazer, sobre a necessidade de "correr gira".
Eu agradeci a entidade por tudo que nos desejou e saímos para a continuação de nossa "busca".
No carro eu não conseguia conter o choro de gratidão a Deus por ter-me apresentado aquele Preto Velho, anônimo, de "uniforme surrado", chapéu de palha gasto, chamado Pai Joaquim das Almas. O Velho me deu uma lição de sabedoria, amor, fé, caridade, e muita, muita humildade.
Com a cena na mente, de tudo que se passou comigo, cheguei a seguinte conclusão: Para se praticar a caridade, só precisamos de amor, boa vontade e uma verdadeira Entidade. Não precisamos de Terreiros cheios, grandes, bem edificados, nem de muitos aparatos.
Ali naquele Terreiro, sem um número significativo de médiuns e de consulentes e sem estrutura material, tive a lição fundamental para a prática na vida espiritual - a humildade -, tive a base que me nortearia no meu relacionamento com as Entidades e com os irmãos de crença e o ímpeto de estudar e pesquisar a fim de saber o que eu estava fazendo dentro da Umbanda.
Do contato com o Preto Velho, afastado dos olhos das platéias numerosas e da pompa enganadora, saí impregnada do sentimento revelado nas máximas do inesquecível Caboclo das Sete Encruzilhadas: “Umbanda é a manifestação do Espírito para a prática da Caridade", "Não cobrar, não matar, vestir o branco, evangelizar e utilizar as forças da natureza".
(*) Fátima Damas é Diretora Executiva da CEUB - Congregação Espírita Umbandista do Brasil, que tem a sua sede no Rio de Janeiro.
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